Na abertura de cada período letivo das instituições de ensino superior, especialmente das universidades públicas, ainda é possível observar uma cena que, ao longo dos anos, foi comum: estudantes com os corpos pintados desfilando pelas ruas, em alguns casos pedindo dinheiro em sinais ou a pedestres. O trote universitário que surgiu como uma forma de integração promovida por estudantes veteranos para recepcionar os calouros ainda está no imaginário de milhares de pessoas como uma brincadeira, que marca a passagem do estudante do ensino médio para o superior.
No início deste ano, no entanto, cenas vexatórias e de violência registradas em algumas instituições de ensino trouxeram à tona a velha discussão: hoje em dia, o trote como rito de passagem, ainda cumpre sua função? Para muitos que ingressam no universo acadêmico, no entanto, os exageros cometidos pelos veteranos em alguns casos têm manchado a imagem do trote que surgiu como uma brincadeira para descontrair e integrar os alunos.
No Rio de Janeiro, as próprias instituições de ensino estão assumindo um papel antes desempenho pelos estudantes mais antigos e propondo atividades para recepcionar os calouros. Na última segunda-feira, muitas universidades do estado do Rio de Janeiro receberam os calouros das mais variadas formas.
Na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) os novatos foram recepcionados com o evento EnTenda, em que várias tendas foram montadas com o objetivo de fornecerem informações sobre a universidade. Na Universidade Federal Fluminense (UFF) foi realizado o Trote Cultural que, segundo a responsável pela coordenação, Nelma Cezário, o projeto que foi implantado em 2001, é uma alternativa ao trote tradicional e contrasta com iniciativas mais violentas.
Nesse mesmo dia, no Rio de Janeiro para uma aula inaugural onde falou sobre "Desafios dos jovens universitários no Brasil de hoje, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, 77 anos, se manifestou contrário ao trote nas universidades do País. Para ele, é um resquício autoritário, uma forma de violência que se perpetua nas instituições de ensino superior públicas e privadas brasileiras. Ele acredita que o trote é uma atitude abjeta e reprovável.
"Não vejo necessidade desse ritual que gera um grande constrangimento para os calouros. Verificamos diversos casos de violência, alguns com vítimas fatais. A quem interessa essa ação? O fim do trote é uma medida correta e que evitará o aborrecimento de muitos estudantes. Não sou favorável a nenhum trote, nem mesmo o chamado social. É possível realizar ações que beneficiem os mais carentes sem precisar obrigar ninguém a participar".
No entanto, os recentes casos registrados em São Paulo, como o da estudante com três meses de gravidez de Santa Fé do Sul, atingida por uma mistura química durante a recepção feita pelos alunos antigos, reacenderam o debate sobre a necessidade da realização de trotes.
Na opinião da integrante do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carolina Barreto, casos de atividades violentas ou vexatórias são isolados, ela ainda alerta para a forma como tem sido tratado o trote universitário.
"Algumas vezes se cria um alarmismo de que em toda recepção feita para os calouros morre alguém ou jogam ácido. Temos atividades para apresentar a universidade aos calouros, a arrecadação de dinheiro para chopada, pintamos com tinta, se a pessoa for alérgica não é pintada, enfim, respeitamos o calouro. Claro que não ofendendo a ninguém. Há também os trotes solidários. No meu curso, Comunicação Social, vamos recolher brinquedos para serem doados às instituições", argumentou Carolina.
A universitária afirma que o fato de realizar um trote com um enfoque cidadão não é propriamente para amenizar opiniões contrárias ao trote. "Não nos preocupamos em melhorar a imagem do trote, mas sim em ajudar as pessoas. Por isso aproveitamos essa semana inicial para a arrecadação. A maioria dos trotes que acompanho são tranquilos, não vejo nada problemático", afirmou.
Entretanto, a mudança na concepção da recepção aos calouros tem sido uma constante nos corredores acadêmicos. A reitora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), Malvina Tuttman, contou que no curso de Medicina houve uma recepção em que os novatos visitam as dependências e aprendem sobre o funcionamento da instituição. Além disso, ela ressaltou que essa é também uma oportunidade de entrar em contato com vários alunos ao mesmo tempo.
"Na verdade, deve haver uma recepção aos alunos que vêm do ensino médio sem uma perspectiva acadêmica. Eles precisam conhecer essa estrutura e se integrar à dinâmica da universidade, mas não através da violência e atitudes que não dignificam o ser humano. Deve existir atividades integradoras e não desarticuladoras. A universidade deve se manter baseada em princípios da dignidade e da humanidade. Outras formas que não contemplam esses preceitos devem ser coibidas", enfatizou.
Segundo Malvina, essa é uma pratica que vem sendo firmada na UniRio há tempos. Tanto que no início de abril haverá uma recepção unificada para todos os calouros. A festividade recebe o nome de "Qual é Calouro?", e o objetivo é familiarizar os alunos novos com os cursos e integrá-los nas dinâmicas da universidade.
O trote é necessário?
Mais um período de aulas se inicia nas universidades e a chegada de inúmeros calouros sempre retoma uma questão polêmica: o trote. Considerado um ritual de passagem ou de iniciação por muitos, o trote tem como característica marcante a dominação de um grupo (calouros) por um grupo mais antigo na instituição (veteranos). Criticado por extrapolar os limites do bom-senso, chegando a atos de vandalismo e violência, o trote é proibido em muitas instituições. Mas será que essa é a única forma de integrar os novos aos velhos estudantes?
"A compreensão que temos é de que esse movimento do ingresso é uma etapa importante de apresentação do calouro na universidade. Ele deve ser marcado por uma integração promovida pelas entidades estudantis. Porém repudiamos que o trote tenha um caráter repressor, opressor e de manutenção das diferenças sociais, no qual o veterano exerceria um papel de poder. Esse modelo deve ser superado. Temos que criar ferramentas para discutir as novas formas. Acredito que temos que aproveitar a oportunidade integrar o calouro às lutas e à vida acadêmica."
GABRIEL MARQUES
DCE DA UFRJ
"Aqui na Uerj teremos a 2ª edição do "Calouro Humano". Esse evento é organizado pela universidade com a participação de diversos setores, incluindo o DCE, e é um contraponto ao modelo convencional de trote que costuma ser uma prática vexatória. Congregamos lazer, integração e um evento acadêmico para recepcionar os calouros. Estamos com ótimas expectativas para esse ano. O evento é encerrado com um show na concha acústica é sela um momento de grande confraternização entre calouros e veteranos. É também uma chance para envolvê-los nas questões do movimento."
ÍTALO AGUIAR
DCE UERJ
"Na Rural está sendo feita uma campanha contra o trote através de cartazes e alguns panfletos que serão distribuídos na primeira semana de aula, com intuito de conscientizar não só os veteranos, mas também os calouros. Alguns cursos adotaram o trote solidário que arrecada donativos para a posterior distribuição em entidades carentes. Esse momento é especial na vida dos calouros e nós do movimento estudantil estamos engajados nessa luta contra o trote e, mais do que isso, na preservação dos direitos humanos, uma vez que esses "trotes" ferem esse direitos."
RODRIGO FERREREZ
DCE RURAL
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