segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Relato de um caso

Ricardo Kubrusly (1)
Vera Maria Martins Salim (2)
José Antônio Martins Simões (3)


Há histórias que nunca são contadas, há as que uma vez se pronunciam e há as que, como esta, ficamos a recontá-la, como se nunca a compreendêssemos.

Quando nascemos já somos nós mas ainda somos parte de nossas mães. Formamos, nesse início de vida, quase que um só corpo, ou melhor, uma só pessoa. O cordão físico que nos unia, cortado ao nascermos para o mundo, ainda persiste através das distâncias físicas que nos separam e, na sua invisibilidade operante, se faz presente: por um lado, pela tensão permanente entre o desejo de futuro e a segurança de um passado semi-esquecido, semi-lembrado. É dessa tensão que surgem os movimentos que nos possibilitam como seres independentes e, ao mesmo tempo, coletivamente organizados. Por outro lado, também percebemos os efeitos contraditórios do cordão perdido, pela aliança entre nossa dependência enquanto ser inaugurado e a responsabilidade de nossas mães, frente a nossa fragilidade.

O rompimento dos vínculos estabelecidos pelo cordão original e suas conseqüências iniciam-se com o primeiro Não. Esse grito de liberdade e independência, dirigido desesperadamente à mãe, quase sempre à beira do comedor, entre a penúltima e a última colherada da papinha, é a primeira manifestação pública de nossa individualidade. Com a vida, nos esquecemos dos acontecimentos, mas nunca de suas conseqüências. A mãe, apavorada na busca inerte de preservar a estrutura simbiótica que simultaneamente lhe cobra e recompensa, ouve, contrariamente, ao invés do Não enraivecido, um Mãe entusiasmado... E emocionada, grita, ela mesma, para quem puder ouvir: Ele disse Mãe, que lindo!... E sai contente e feliz, acalantada pelo suposto reconhecimento, que se de fato houvera, certamente não se manifestara pelo Não.

Essa dinâmica paradoxal da relação mãe bebê, que ao mesmo tempo liberta e aprisiona, repete-se, vida afora, pelos anos de escola, onde, gritando seus nãos, construímos nossas identidades específicas, empurrados e puxados pela escola que nos quer ao mesmo tempo dependente e independente.
A grandeza das escolas, assim como das mães, está em reconhecer os nãos como nãos que deveras são e não como mães mal pronunciadas. As boas escolas, como as boas mães, são sempre capazes de se felicitarem com os caminhos diferentes e, muitas vezes, surpreendentes, que filhos e alunos se propõem a trilhar. Afinal, o pouco que sabemos dos caminhos que inventamos é que as paisagens se revelam novas quando o caminho é construído pelo caminhar. São as diferenças que experimentamos em nossa vida que justificam nossa caminhada.

Escolas e mães, às vezes, muito se parecem e nos vícios se copiam. Passam a supor serem filhos ou alunos a todos que se inserem nos seus cotidianos e muitas vezes acostumam-se à perversão pedagógica de confundirem os nãos que as repelem em apelos por uma mãe que já não mais existe.

Jovens professores ao ingressarem em uma escola são incorporados à casa, muitas vezes, primeiramente numa posição intermediária entre o aluno e o professor. A escola o olha como ainda precisando de cuidados posto que ainda jovem, afeiçoa-se fisicamente mais aos alunos do que aos professores. Seus diretores mais experientes, mais velhos, muitas vezes acomodados a seus cargos e salários, exercendo uma lógica envelhecida e duvidosa, em nome dos cuidados que julgam necessários ao jovem professor que se inicia, impõem-lhe restrições e monitoram suas atitudes e pensamentos. Durante um período, o probatório, o professor deve demonstrar conhecimento dos conteúdos das disciplinas que pretende ministrar e uma conduta pedagógica compatível com a escola que o testa. Isto é claro, mas infelizmente, em muitos casos, os zelosos guardiães que as dirigem, exigem obediência ideológica e política. Se esquecem que uma educação deve ser construída pelo respeito às diferenças de idéias em todos os níveis e, saudosos das épocas ditatoriais onde a intolerância preservava poderes estabelecidos, destroem carreiras e aniquilam futuros daqueles que, corajosamente, ousam pensar as instâncias da vida de maneira diversa da que se nos é imposta, cotidianamente, pelas instâncias da mídia.

Nós, professores de uma universidade pública já nos acostumamos, infelizmente, com pequenas perseguições. Elas fazem parte do cenário de nossa luta por um mundo mais solidário, mas, felizmente, ainda nos indignamos com sentenças como as que o Colégio de Aplicação da UFRJ (CAp/UFRJ) recentemente aplicou ao jovem professor Gabriel Marques. Vejamos os fatos:


O Professor Gabriel foi chamado a atenção por seus superiores hierárquicos dentro do CAp/UFRJ, numa reunião do setor curricular de Educação Física, convocada sem pauta e sem a presença dos demais professores substitutos, após o aparecimento na lista de discussões Universidade Pública de uma mensagem assinada, de sua autoria, relatando o ato no CONSUNI da UFRJ do dia 28 de agosto contra o plano diretor. O Professor Gabriel saiu constrangido desse encontro e nos procurou, como amigos e companheiros de militância. Fizemos uma reunião e decidimos que o caminho a seguir era procurar o jurídico da ADUFRJ. A advogada de plantão ponderou que não se podiam ainda caracterizar abuso de poder ou constrangimento moral as ameaças veladas que sofrera na citada reunião. Encaminhou-o, então, para diretoria da ADUFRJ, que comprometeu-se a realizar a interlocução com a Direção do CAp. Infelizmente, até o momento, a entidade representativa do corpo docente, não realizou a interlocução e não possui posição acerca do caso. Tentamos, então, diversas vezes marcar uma reunião com a diretoria do CAp/UFRJ, primeiramente o Professor Gabriel e depois nós, supostamente mais experientes e menos envolvidos com os acontecimentos. Não conseguimos nos reunir com a direção do CAp/UFRJ nem o Professor Gabriel com a diretoria da ADUFRJ, que forneceria suporte político durante o diálogo com a direção do CAp. Finalmente, a renovação por mais um ano do Professor Gabriel lhe foi negada, sendo esta informação oficialmente repassada no dia 4 de novembro, 35 dias após o Conselho Pedagógico Extraordinário da Unidade, que deliberou os pedidos de substitutos para o ano letivo de 2009.

Ressalte-se que o Professor Gabriel goza de respeito e admiração por parte de professores, alunos e pais de alunos do CAp/UFRJ. Seu desempenho como professor é excelente, tendo sido em diversas oportunidades reconhecido por seus alunos e pais de alunos como um bom professor. Ressalte-se também que é costume no CAp/UFRJ a renovação pelo segundo ano de seus professores substitutos e que todos os outros professores nessa condição tiveram seus contratos renovados, a não ser os que optaram por não permanecer na Unidade.



Diante dos acontecimentos, sempre diante dos acontecimentos, é que podemos diferenciar discursos coerentes de ações coerentes. Acostumamo-nos ao discurso muitas vezes coerente de nossos dirigentes, nas nossas escolas públicas, nas nossas universidades públicas. Algumas vezes partilhamos das mesmas idéias, outras não. Suportamos e creditamos à dificuldade de fusão entre teoria e prática que como cientistas conhecemos bem, as pequenas humilhações de ordem ideológica que vez por outra acontecem em nossos campi, mas um acontecimento de perseguição explícita como este acima descrito, merece uma reflexão de todos os alunos, professores e técnico-administrativos que compõem a UFRJ e, certamente, de todos os cidadãos do mundo que o querem melhor. Precisamos refletir e precisamos agir, imediatamente, para reconduzir o Professor Gabriel ao seu lugar de direito junto ao CAp/UFRJ e para que incidentes de macartismos revoltantes como este não voltem a acontecer entre nós.

1 Ricardo S. Kubrusly é Professor Associado2 do IM/UFRJ e do HCTE/UFRJ
2 Vera Maria Martins Salim é Professor Adjunto 4 do PEQ/COPPE
3 José Antônio Martins Simões é Professor Associado2 do IF/UFRJ

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