terça-feira, 7 de julho de 2009

Educação: gestão social ou questão social?*

*Vânia C.Motta[1]
Bruno Gawryszewski[2]
Duas certezas vêm sendo insistentemente postas nos últimos anos: 1) o problema da educação pública brasileira é uma questão de gestão e 2) sendo uma questão de gestão, o terceiro setor é a esfera mais eficaz para gerenciar, não só o sistema educacional, mas todos os “serviços” sociais.

Com essa crença, porém materializada pela reforma gerencial do Estado pelo então Ministro Bresser-Pereira, vimos crescer significativamente ao longo dos governos de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva o número de Fundações e Institutos de caráter privado, Organizações não-governamentais (Ongs), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e Organizações Sociais (OS). São organizações do “terceiro setor” que passaram a tomar para si as responsabilidades das ações sociais do Estado, disputando subsídios do governo e financiamentos de organismos internacionais.

De dever do Estado e de direito do cidadão, a educação e a saúde passam a se constituir em serviços ou mercadorias ou caridades público-privada conforme o tipo de “ação social” e interesses de determinados setores.

Não temos dúvida de que tais crenças estão ancoradas na doutrina neoliberal: Estado mínimo, redução dos gastos sociais e das receitas estatais, acobertadas pela ideologia da ineficiência do Estado. E de que com todas as “estratégias eficazes” da boa governança difundidas pelos organismos internacionais ligados ao mercado, as medidas impostas pelo FMI aprofundaram as mazelas sociais nos países do tipo capitalismo dependente e subordinado, como o nosso. O “terceiro setor” cumpre o papel de assegurar a paz nesse contexto político e econômico que se alimenta da miséria, da precarização do trabalho e da “exclusão” de uma grande massa de trabalhadores da sociabilidade do capitalismo.

Foram e são muitas as implicações que se processaram nesses últimos anos e que não dizem respeito somente à “acumulação de miséria, de trabalho atormentante, de escravatura, ignorância, brutalização e degradação moral” como nos alertou Marx n’O Capital, mas à própria sobrevivência da humanidade tendo em vista a degradação ambiental gerada pela ganância do lucro, além do desencadeamento do processo de despolitização da sociedade civil.

Com tudo isso e mais com a atual crise econômica mundial, alguns intelectuais até apontam que o neoliberalismo estaria chegando ao seu fim. Será?

Para Leda Paulani, ao contrário de estar chegando ao seu fim, o neoliberalismo pode se fortalecer com esta crise. Em momentos de crise, segundo a economista, as retóricas de redução dos gastos do Estado – obviamente nas áreas sociais – e da necessidade de um gerenciamento da crise são retomadas mais fortemente. E as possíveis concessões aos trabalhadores ficam nos últimos planos, pois passa a ser prioridade, nesses momentos difíceis, assegurar o emprego a qualquer custo.

A vivacidade da doutrina neoliberal pode ser constatada no último 5 de maio, quando foi aprovado na Câmara Municipal do Rio de Janeiro o projeto de lei nº 2/2009 que possibilita firmar contratos de gestão pactuados entre o governo municipal e OS’s - entidades jurídicas de direito privado, de interesse social e utilidade pública, criadas com a finalidade de absorverem atividades públicas nas áreas de educação, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, meio ambiente, cultura, saúde e esporte (Lei nº 9637/1998) definidos como “serviços não exclusivos do Estado” pela reforma administrativa gerencial pública.

Cabe, aqui, um esclarecimento: diferentemente das Ong’s e das OSCIP’s, as OS’s são entidades privadas, criadas por iniciativa do poder público, exemplificando o fenômeno de privatização do direito público. A entidade nasce com o contrato de gestão, nasce para e por ele. As Ong’s e OSCIP’s são entidades privadas criadas na sociedade civil, nesse sentido que a Lei nº 9.790/99 instituiu o termo parceria para este modelo de gestão público-privado. Trata-se de um modelo posto na reforma do Estado neoliberal-gerencial, legitimado com a falácia de ganhar maior agilidade fugindo da própria burocracia, principalmente, dos princípios da licitação pública.

O projeto de lei nº 2/2009, ainda que restrinja a atuação das OS’s no âmbito da Educação, mais especificamente, na administração municipal das creches e em programas de reforço escolar, trata-se de uma tendência que não só será alargada aos demais níveis escolares como também às demais esferas dos campos social e cultural e da administração pública estadual e federal.

Segundo a secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro, Claudia Costin, em artigo publicado no Jornal do Brasil, “A sociedade e a educação”, um dia antes da aprovação do projeto de Lei 2/2009: “O Estado tem um importante papel a desempenhar nas políticas sociais. Mas não pode e nem precisa ter o monopólio do esforço para melhorar a sociedade”.

No âmbito estadual, o governador Sérgio Cabral encaminhou o projeto de lei 1975/2009 que propõe a criação de OS’s para gerir os 25 espaços públicos de cultura, incluindo o Theatro Municipal, que está sendo reformado em virtude do seu centenário de fundação. Para convencer a opinião pública sobre a inexorabilidade do PL, o governo estadual recrutou um exército de apologistas como Arnaldo Jabor e Nelson Motta que se remontam a alguns casos de “sucesso”, como a Orquestra Sinfônica de São Paulo, ao mesmo tempo em que se “esquece” de casos de transferências malfadadas para fundações privadas como a Fundação Bienal e o Museu de Arte de São Paulo. Em iniciativa semelhante, na esfera federal, tramita há dois anos o PL 92/2007 de autoria do governo Lula, que autoriza a instituição de fundações públicas de direito privado para o desempenho de atividades do Estado nas áreas de cultura, saúde, assistência social, desporto, meio ambiente, ciência e tecnologia, turismo e previdência complementar.

Como sempre, quem paga a conta é a classe trabalhadora. Grandes empresas, através de seus braços sociais [fundações, institutos] subsidiadas pelo Estado, reduzem seus impostos, mediante incentivos fiscais, na troca de míseras e hipócritas ações sociais focalizadas e localizadas em comunidade de risco ou que podem colocar em risco seus negócios; criam-se organizações sociais geridas por representantes da sociedade civil, mas quem serão?; recrutam e treinam indivíduos generosos para, voluntariamente, ocupar espaços desocupados pela falta de concurso e investimentos e ou precariamente ocupados por profissionais mal pagos. Enfim, substituem-se políticas de Estado por pequenas políticas de corredores e de barganha do poder eleitoreiro e ou de interesses privados e imediatos.

Por conta da crise econômica mundial, poderemos nos deparar com a insólita situação de nossas redes públicas de ensino básico e universitário se metamorfosearem em OS's. E ainda, com o apoio de organizações na sociedade civil, tais como Movimento Todos pela Educação, que são mantidos por grandes empresas e revestidos numa roupagem apolítica, solidária e dialógica. Aí sim enterraremos de vez os poucos avanços da Constituição Federal de 1988, que no Artigo 205, afirma a educação como “direito de todos e dever do Estado e da família”, especifica o princípio de gratuidade no Artigo 206, assegurando-o em todos os níveis na rede pública, e reafirma, no Artigo 208, o dever do Estado na garantia da educação.

Estamos vivendo o aprofundamento e o alargamento da privatização dos serviços públicos, bem nos moldes neoliberais. A privatização de serviços públicos educacionais não só solapa nossos direitos como também precariza o trabalho dos profissionais da educação contratados com salários aviltantes e desrespeitando as poucas garantias trabalhistas que nos restam.


Este é o modelo de gestão social ou educacional eficaz: prestar serviços de baixo custo e de baixa qualidade, fugindo da lei de licitação pública. Afinal, se esta nova gestão “fracassar”, como aconteceu e está acontecendo com várias Ongs que prestaram ou ainda prestam serviços de creche em comunidades carentes e que se encontram sem dinheiro para pagar seus profissionais e arcar com seus custos pela falta de continuidade no patrocínio financeiro, os experts em gestão surgirão com novas estratégias e os “políticos” de plantão estarão postos para assegurar gordas gorjetas da verba pública.

É urgente pensarmos num projeto de sociedade; é urgente tomarmos a educação, a saúde, a cultura, o direito a uma vida digna como uma questão social e não como uma gestão social.
[1] Doutora em Serviço Social (UFRJ). Mestre em Educação (UFF). Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ e Pesquisadora da FAPERJ.
[2] Mestre em Educação (UFRJ). Doutorando em Educação (UFRJ).

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá!
Gostaria que fornecessem a fonte, na qual posso encontrar este texto da professora Vânia Motta: Educação: Gestão social ou questão social? que vocês postaram neste blog.
Grata.
Joelma- FE UFRJ

Movimento Quem vem com tudo não cansa! disse...

Cara Joelma,

este já é o artigo na íntegra, elaborado pela profª Vânia e pelo Bruno Gawryszewski.

Saudações!