sábado, 4 de outubro de 2008

Número Errado*

Domingo. Manhã cinza. A porta do estábulo aberta. O pátio da prisão era a cidade triste. Dos Leblons aos Bonsucessos, por todo país, vestidos de vergonha e medo votamos. O que poderia ser a festa, o que deveria ser a festa da escolha, era a agonia do mesmo. A dificuldade entre as nuanças de cinza tornava o processo demorado. Digitando 16 números consecutivos, corretos, escolheríamos os códigos dos pixels que coloririam os próximos anos cinzas. E os cinzas escolhidos ririam, ririam, mas nós, apenas cobríamos, responsável e obedientemente, o caminho, do estábulo ao pátio de digitação, ida e volta.

Se votássemos certo, apareceria uma fotografia. Colorida? Era uma pequena alegria, uma recompensa, em meio ao cinza entristecido da tarefa determinada. Uma coisa era certa: negar os cinzas era escolher um número errado. Errar os cinzas e tentar alguma cor era inadmissível. A pessoa era imediatamente admoestada pelas máquinas controladoras do desejo e por pessoas que, desavisadas ou não, poderiam por casualidade ou destino se encontrar por perto.

Se insistíssemos e confirmássemos o erro, enormes orelhas cresceriam imediatamente na lateral de nossas faces, dando início às verdadeiras transformações. Com elas, íamos sumindo, desaparecendo até nos tornarmos uma nuvem de erros que se perderia em meio à poluição... nos incorporaríamos ao cinza e, depois de algum tempo, ninguém, nem mesmo os pobres digitadores de equívocos invisíveis, a que nos tínhamos transformado, perceberiam os erros. As cores do mundo nos eram negadas, mas podíamos ver, quando acertássemos os números, por um relance, as fotografias dos risonhos candidatos.

Número errado! Repetia a máquina de escolhas. Vote certo! Digite um número correto. Você pode fazer a sua escolha, gritava a máquina, eloqüente, de destinos. Seja um cidadão, escolha um número certo, vote cinza e volte ao estábulo de onde, agora na segurança da égide do estado, poderemos todos, sim, poderemos todos, por mais alguns anos, apreciar o trabalho dos sorridentes acinzentadores da realidade.

Número errado! Do azul ao Vermelho sonho. Amarelos, verdes de marrons, violetas, laranjas pêssegos e abóboras fúcsias. Número errado nas cores de rosas jambos e abacates celestes.

A todas as cores, não. Números errados, impossibilitados pela prática democrática dos próximos destinos. Como nuvens hidrófobas éramos as cinzas cinzas e já nos acostumávamos a essa condição de invisibilidade. Figura e fundo. Fundo e fundo. Éramos cinzas.

Agora, quando hoje já não demora amanhã, a impressão que fica é que havia, entre os cinzas, alguns ainda mais cinzas, mais invisivelmente cinzas, os sorridentes, e que os resultados foram ainda piores do que se esperava. Mas é só impressão. Impressão desesperada. Esperávamos o que? Se todo número que em pixels transformado não for apenas qualquer nuança de cinza é um numero errado.
*Professor Ricardo Kubrusly
Texto publicado no Jornal da AdUFRJ após as eleições de 2006, durante a gestão em que o autor pertencia à Diretoria da entidade.

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