domingo, 15 de junho de 2008

23 anos: contagem regressiva para as cinzas*

Embora não tenha sido tão inusitado e instigante como em 2007, o dia 30 de maio deste ano merece algumas reflexões que sirvam como lembrança. Ao passo que nosso planeta pôde completar mais um movimento de translação, incongruências legislativas e administrativas de Nova Iguaçu continuam impossibilitando que eu lecione no município1.

Em casa estou e vagamente escuto notícia referente a manifestantes. Dessa vez da UFRJ. Não era cinematográfica como a Elite que se destacou no cenário internacional e no submundo da pirataria, mas era de Choque a Tropa que seguia fidedignamente o roteiro que lhe foi imbuído: bombas e coerção para cima dos professores, estudantes, funcionários e pacientes que ocupavam parte da Linha Vermelha—uma das principais vias de acesso do Rio de Janeiro— porque a Saúde e a Educação Públicas são diariamente sucateadas, fornecendo brechas para a inserção dos interesses privados. Esses manifestantes devem ser mesmo uns baderneiros, já que o quadro conturbado apenas traz a precarização e o cancelamento de atendimentos à população e prejuízos para a formação de centenas de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas etc. como conseqüências.

Num mundo polivalente e precarizado, o orkut tem permitido trocas de centenas de céleres parabéns, já que pouco nos sobra tempo—e dinheiro—para encontros físicos ou até mesmo bons diálogos ao telefone. É perceptível a justiça da correlação de forças. De um lado, escrevo essas humildes palavras, que chegarão a alguns de meus amigos, familiares e conhecidos, com o suporte de ferramentas virtuais. O texto que subscrevo? Muitos nem abrirão a mensagem; outros muitos considerarão muito longo; ainda outros talvez não possuam o necessário e escasso tempo. Dezenas, centenas lerão? Já terei de ficar satisfeito. Entretanto, do outro lado, milhares, milhões de aparelhos garantem recordes de audiências e milhões, bilhões de arrecadação advindas de propagandas. Lares, bares, restaurantes Brasil afora acompanham mais um final de novela, tendo ainda mais um dia para rever e um intervalo sadio com Gugu, Faustão ou Pânico antes de iniciar a próxima empreitada. De Duas faces à Predileta, o lixo da ditadura ideológica global é engolido pela população.

O supersensacionalismo da mídia, que, burguesa, catalisa a revolta das pessoas para o ódio e soluções paliativas e individualistas. De Isabela a Gabriela, passando por João Hélio, faço uma pausa para lembrar que há outros tantos milhões de brasileirinhos sendo explorados sexualmente ou com altíssimas jornadas de trabalho em lavouras e canaviais ou ainda vítimas do narcotráfico e da polícia repressora e criminalizadora da pobreza—esses faces da mesma moeda capitalista. Pena de morte? Prisão perpétua? Justiça ou vingança? Enquanto os dominantes camuflam que as necessidades são mais amplas do que esses meros apontamentos, aguardemos novas barbaridades para inquietar, porém naturalizar o sistema vigente.

Prestes a interromper essas palavras, lembrei-me de histórias como a de David e Golias e decidi: vale a pena terminar o texto! Alceu Valença, Dominguinhos e dezenas de atores teatralizavam a cidade pernambucana na Fundição Progresso, demonstrando as potencialidades criadoras e criativas dos seres humanos, seja na música ou na culinária. Condições objetivas são necessárias para que nosso desenvolvimento se concretize. E o que vemos no Nordeste pauperizado de nosso país é Fome Zero e bolsas assistencialistas para os trabalhadores; e milhões de investimentos para a Transposição do Rio São Francisco para o beneficiamento empresarial.

Retornando para casa, a contradição se expressava mais fortemente. Na Av. Presidente Vargas, agências bancárias se multiplicam, cuja lucratividade atinge cada vez mais altos índices. Na mesma proporção, aumenta a quantidade de seres humanos atingidos diretamente pela barbárie. Nas portas das agências, deitados sobre e sob jornais, panos e algumas possíveis doações de roupas de cama usadas, condições subumanas subsidiam como reflexão e esperança exclusivamente dúvidas acerca da garantia de um prato de comida ao longo do dia para essas pessoas.

Envoltos numa sociedade onde tudo se mercadoriza e os seres humanos se desumanizam, a produção dos meus sonhos não migrou ao mercado. A égide neoliberal propaga o individualismo e escamoteia as verdadeiras relações entre exploradores e explorados. Apesar do simpático samba da Mocidade clamar que sonhar não custa nada, tentáculos difundem-se para ocupar nossas mentes e naturalizarmos a fome, a miséria, a violência e todas as mazelas sociais com um trivial sempre foi assim.

Subordinar-se e ajoelhar-se para rezar a cartilha vigente? Digo um enfático Não! Pois tenho plena certeza na organização coletiva que transforme nossos sonhos em subversão da atual realidade que nos cerca. Os acomodados e os adversários vão dizer que, por sermos jovens, somos ingênuos e iludidos. Da volta do trem no ano passado até hoje, aumento a certeza de defender um projeto histórico de sociedade antagônico ao que vigora. Para os que discordam e dizem simplesmente “quero ver daqui a 10, 20 anos”, será preciso continuar a contagem regressiva. Não se cansem, pois a retirada das lutas necessariamente um dia chegará, mas apenas junto às minhas cinzas, que deixarão como herança a chama acesa dos sonhos, que hão de concretizar a transformação.

1Parágrafo referente ao texto “22 anos em 37 minutos. Eu vou andar de trem... Você também...¿”. Disponível em http://www.efdeportes.com/efd110/ato-contra-o-pan-rio-07.htm
*Gabriel Rodrigues Daumas Marques

Um comentário:

Unknown disse...

Olá, meu nome é Fernando, sou o pai da Sabrina Graziani (que estudou com você na UFRJ - Ed. Física)e da Suellen Graziani (que atualmente faz a pós-graduação com você, também na UFRJ, em primeiro lugar gostaria de parabenizá-lo pelo olhar crítico, mas sensível, da nossa realidade, mas especificamente a do Rio de Janeiro. Para mim, você é um novo cronista da "praia". Futuramente, tenho certeza, estarás ao lado de Veríssimo, Ubaldo e outros. Um abraço!

jlimadutra@hotmail.com